Camarate, 35 Anos Depois

sábado, 2 de maio de 2015

Por José Ribeiro e Castro

Quando saem notícias sobre a comissão parlamentar de inquérito (CPI) a Camarate, surgem perguntas de espanto; e críticas por ainda se andar à volta do assunto. Estarmos na 10ª CPI ajuda à admiração: «Dez comissões de inquérito e ainda não descobriram nada!?»

Na verdade, vão passar 35 anos sobre o 4 de Dezembro de 1980. Isto é, vão passadas quase duas gerações. Sá Carneiro e Amaro da Costa, as mais fortes referências entre as sete vítimas mortais do Cessna caído em Camarate, pouco dizem à generalidade dos que hoje têm menos de 50 anos – tinham 15 anos ou menos na data da tragédia. E o comum da opinião pública pouco sabe do processo e das suas enredadas peripécias. As perguntas são compreensíveis. Importa, portanto, esclarecer.

Primeiro, o «ainda não descobriram nada» não é verdade. Descobriu-se que foi um atentado. Falta determinar com absoluta certeza contra quem era dirigido, porquê e por quem, isto é: provar o alvo, o móbil e os autores materiais e morais do crime.

Segundo, porquê dez comissões parlamentares de inquérito? O número tem a ver com a sucessão das Legislaturas e com a não colaboração quer da Justiça e Polícia Judiciária, quer dos serviços de Aeronáutica Civil. A primeira CPI (1982/83) foi uma comissão clássica, de mera fiscalização sobre o que a DGAC e a PJ haviam feito – e a generalidade das críticas, justas, às insuficiências e confrangedora incompetência das investigações iniciais já consta do seu relatório. As seguintes foram comissões de outra natureza, procurando apurar os factos; e foram muitas vezes interrompidas por dissoluções parlamentares. Assim, a 2ª e a 3ª formam um mesmo bloco. A 6ª nem publicou relatório, continuando na 7ª. E a 9ª e actual 10ª são continuação dos trabalhos feitos pela 8ª CPI, que não pôde concluir as suas averiguações, em virtude da dissolução parlamentar em 2004. Infelizmente, a legislatura 2005/09 nada fez; os trabalhos só retomaram em 2010, com nova dissolução no início de 2011… Esta 10ª CPI deverá ser a última. O que não conseguirmos apurar e estabelecer neste quadro e por estes meios, é porque será praticamente impossível estabelecê-lo e apurar melhor neste quadro e por estes meios. Terá de ficar para a História e o jornalismo.

Há diligências de prova que só a polícia e instrumentos judiciários podem efectuar capazmente – e só em cima dos factos e acontecimentos ou com proximidade quanto a estes; não a 35 ou mais anos de distância. E, se serviços de inteligência estrangeiros, referidos no processo, não colaborarem com o que tenham ou não tenham nos arquivos, ajudando a separar a verdade da mentira e a clarificar objectivamente algumas questões, aspectos há que ficarão por esclarecer e determinar com rigor.

O processo foi intoxicado por uma precoce tese técnica de acidente, que se provou totalmente inconsistente; e sofreu negligência da Polícia Judiciária, que, embora desculpando-se com os “técnicos do acidente”, desprezou indícios de acção criminosa que logo conheceu e devia ter aprofundado. O bloqueio coube, depois, à obstinação corporativa do Ministério Público, fiel à tese “uma vez errado, errado toda a vida.”

Houve tempo perdido. Tempo que nunca se recupera por inteiro.

O que sabemos e soubermos ao Parlamento ficamos a devê-lo. Entre dificuldades e limitações, só a Assembleia da República cumpriu o seu dever.

Naqueles dois primeiros anos a seguir à tragédia, em que pouco sabíamos do que acontecera, era habitual o tema de Camarate vir à baila em reuniões do partido e da Aliança Democrática, ou em sessões de esclarecimento públicas que então se faziam. Numa delas, face à insuficiência do que eu tinha para dizer, um cidadão interpelou-me assim: «Pois é! Fossem vocês a ter morrido e eles estivessem vivos, podem ter a certeza de que Sá Carneiro e Amaro da Costa não deixariam pedra sobre pedra até se saber tudo sobre como tinham morrido ou quem vos tinha assassinado!» Esta frase nunca mais me saiu do espírito. Camarate é um dever moral – para com as vítimas; e para com os cidadãos. Saber o máximo que pudermos tem sido um imperativo.

Retirado de http://www.cds.pt/folhacds/2015/04/20150430/ribeiro-e-castro.html 

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